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Monteiro Lobato e o pensamento racista brasileiro



O movimento eugenista foi exuberante em nomes, títulos, instituições e publicações. Tinha como principal objetivo o branqueamento da nação pois entendia que a mestiçagem atestava fracasso nacional. A existência de um campo eugênico no Brasil também encontrou espaço na literatura e escritores como Monteiro Lobato deixaram seu racismo registrado em diversas obras na boca de inúmeras personagens.

O autor também escreveu várias cartas para Renato Kehl (médico e um dos líderes do movimento eugenista) defendendo o processo de eugenia, eis o trecho de uma delas: “Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. […] Precisamos lançar, vulgarizar estas idéias. A humanidade precisa de uma coisa só: póda. É como a vinha. Lobato.”

Monteiro Lobato foi um homem de seu tempo e como intelectual poderia ter criticado muitos erros cometidos pela sociedade da época mas não teve essa capacidade crítica. Boa parte de sua obra dialogava com o pensamento racista brasileiro amplamente fomentado e o autor era partidário de movimentos eugenistas e quis transmitir no conjunto de sua obra uma visão pejorativa da comunidade negra.

Conhecido especialmente por sua produção na literatura infantil Monteiro Lobato também escreveu romances e ficções. A seguir, trechos de três obras publicadas em momentos distintos entre 1920 e 1937 que expõem não apenas o preconceito racial escancarado do autor mas de toda uma sociedade pós abolição que estava mais preocupada em fomentar a exclusão do que em encarar frontalmente a chaga aberta que o longo período de escravidão provocou.


1) NEGRINHA (1920)

Publicado em 1923, o livro de contos Negrinha, através de seus personagens, forma um retrato da população brasileira do início do século XX e o autor não economiza nas palavras ao descrever o que era a sociedade que ele estava inserido. Bastidores de uma sociedade patriarcal e racista que deixa transparecer os vestígios de uma persistente mentalidade escravocrata da sociedade mesmo décadas após a abolição. Segue pequeno trecho:

(...) Que ideia faria de si essa criança, que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi — bubônica. A epidemia andava à berra, como novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal, achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida, nem esse de personalizar a peste... O corpo de Negrinha era tatuado de sinais roxos, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa, todos os dias, houvesse ou não motivo. A sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. (...)


2) O PRESIDENTE NEGRO ou o choque das raças (1926)

Foi escrito em apenas três semanas em meados de 1926. Único romance de ficção científica escrito e pensado por Monteiro Lobato como um cartão de visitas ao mercado editorial estadunidense. Um cartão que lhe daria em troca "um saco de dólares". Lobato havia sido nomeado adido comercial no consulado brasileiro em Nova York, e antes de assumir o posto, conforme explicou em carta ao amigo Godofredo Rangel, teve uma "ideia mãe": um romance americano isto é, editável nos Estados Unidos. Meio à Orson Wells, com visão do futuro. O eixo será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a raça branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente negro! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco. Segue um trecho da obra:

(...) — Mas... o "mas" perturbador de todos os cálculos humanos surgiu. Apesar de submetida aos mesmos processos restritivos dos brancos, a raça negra começou desde logo a apresentar um índice mais alto de crescimento. A proporção do negro puro relativa ao branco subiu a um quinto, a um quarto, a um terço, e por fim chegou a metade... Quer dizer que o binomio racial, desprezado na era do crescimento imigratório e descurado no início do regime seletivo, passou a entrar na fase aguda do "resolve-me ou devoro-te".

— Em quantos eram calculados os negros nesse momento?

— Na era em que tomamos este corte anatômico do futuro, ano 2228, as estatísticas apresentavam dados alarmantes. Negros, 108 milhões; brancos, 206 milhões. E como o coeficente da natalidade negra acusasse uma nova subida, o instinto de conservação dos brancos eriçou-se nos primeiros arrepios da legítima defesa. Dos muitos alvitres propostos para de uma vez por todas arrancar a América do seu beco sem saída predominavam duas correntes de ideias contrarias, conhecidas por "solução branca" e "solução negra". A solução branca...

— Já sei! exclamei aflito por acertar uma só vez que fosse. A solução branca era expatriar o negro!...


3) HISTÓRIAS DE TIA NASTÁCIA

O livro foi publicado em 1937 e traz Tia Nastácia contando estórias infantis do folclore brasileiro uma vez que Pedrinho é tomado de extrema curiosidade. Monteiro Lobato não economiza nos termos racistas e por vezes sexistas. Seguem dois trechos em que Pedrinho descobre que folclore é a sabedoria do povo e dispara falando com Emília:


*trecho 1

(...) — Uma ideia que eu tive. Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando, de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer tia Nastácia para tirar o leite do folclore que há nela.

Emília arregalou os olhos.

— Não está má a ideia, não, Pedrinho! Às vezes a gente tem uma coisa muito interessante em casa e nem percebe.

— As negras velhas — disse Pedrinho — são sempre muito sabidas. Mamãe conta de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma de nome Esméria, que foi escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se na varanda e desfiava histórias e mais histórias. Quem sabe se tia Nastácia não é uma segunda tia Esméria?

Foi assim que nasceram as Histórias de Tia Nastácia.


*trecho 2

(...) — Que história de contar sete é essa? — perguntou Emília quando a negra chegou ao fim. — Não estou entendendo nada.

— Mas isto não é para entender, Emília — respondeu a negra. — É da história. Foi assim que minha mãe Tiaga me contou o caso da princesa ladrona, que eu passo para diante do jeito que recebi.

— E esta! — exclamou Emília olhando para dona Benta. — As tais histórias populares andam tão atrapalhadas que as contadeiras contam até o que não entendem. Esses versinhos do fim são a maior bobagem que ainda vi. Ah, meu Deus do céu! Viva Andersen! Viva Carroll!

— Sim — disse dona Benta. — Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes escritores. O povo... Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes, e passá-las para outros ouvidos, mais adulteradas ainda.

— Pois cá comigo — disse Emília — só aturo essas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras — coisa mesmo de negra beiçuda, como tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto...













At last - Etta James
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